sábado, 3 de julho de 2010

O Exército de Lúcifer

Na manhã seguinte à morte do escritor português José Saramago, ocorrida em 18 de junho passado, eu entrava no banho, como de hábito, acompanhado do meu fiel radinho de pilha. Era um dia frio e o chuveiro eu ligara antes pra água esquentar bem, que não sou bobo. Na ocasião, procurei sintonizar uma emissora que costumo ouvir, porém, enquanto a procurava parei noutra rádio, pois um locutor anunciava a morte do renomado escritor. Fiquei ali, só pra ver o que dava. Lida a notícia, entrou no ar uma segunda pessoa, que era a que comentava os fatos.

Não identifiquei a rádio, eis que havia muito vapor dentro do “box”, mas vi logo que se tratava de uma dessas, ou o programa em si, pertencente a uma igreja. E já vais saber por que. Eu, na minha ingenuidade, esperava que ele viesse dizer quem foi Saramago. Comentasse suas obras, ou falasse da sua biografia ou dissesse aos ouvintes que tipo de homem ele era, o que pensava. Mas nada disso fez, o que frustrou a mim e, certamente, inúmeros ouvintes. Limitou-se a dizer: “Este já foi tarde, porque pertencia ao Exército de Lúcifer”.

Fiquei estarrecido com o que ouvi. Em primeiro lugar, porque eu confesso a minha ignorância, em não saber que exército é esse. Mas, presumo, ele quis dizer que Saramago tinha conluio com o diabo. Eu cheguei a esta conclusão porque sabia que o escritor luso era ateu. Não só era ateu, como tinha a coragem e a pureza de confessar que era. Agora... dizer que o homem tinha parte com o demônio, só porque expressou a sua opinião é lamentável.

Eu não aceito alguém rotular uma pessoa, com tanta maldade, só porque ela expressou a sua opinião. Veja-se, por exemplo, o caso deste escritor, um dos mais inteligentes que a humanidade já teve, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e do Prêmio Camões, que é o mais importante de Portugal. Um gênio da literatura e da poesia universal. Nunca se soube de algum crime ou maldade cometida por ele. A não ser que o nobre comentarista ache que é crime não acreditar em Deus. Mas é um direito sagrado de cada um acreditar, ou não. E direito maior ainda a livre expressão do pensamento.

O que o referido comentarista, tão ortodoxo, deixou transparecer é que não tinha cultura suficiente para comentar as obras de Saramago, assim, partiu logo para o fanatismo. Simplificou e foi ridículo. Talvez ele tenha agradado pessoas fanáticas e despreparadas como ele. Eu gostaria que ele voltasse agora àquele microfone e dissesse tudo o que sabe a respeito do imortal escritor. Após, aí sim, poderia dizer que não concorda com a sua posição de ateu. E fundamentar porque não concorda. Ainda que nada saiba, que leia então algo a respeito de Saramago, cumprindo, assim, a sua missão de comunicador, que é levar cultura ao público. Jamais pregar o ódio religioso, que já fez tantas vítimas e cometeu tantas atrocidades no curso da história. Isto sim, todos religiosos e ateus têm a obrigação de saber.

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